segunda-feira, 16 de março de 2015

Robert Parry: Como os "mercados livres" difamam a "democracia"


O fio que liga toda a moderna política externa dos EUA é uma insistência obcecada em aplicar soluções de “livre mercado” a todos os problemas do mundo. Quer dizer... Isso, se você não tiver a grande sorte de viver em país aliado dos EUA no Primeiro Mundo, ou no caso de o seu país ser grande demais para ser violentado.

Por Robert Parry*, no OpEdNews


 
 

Assim, se você está na França, Canadá ou – não se pode esquecer! – na China, o seu país tem licença para oferecer serviços generosos de saúde e de educação, e pode construir infraestrutura moderna. Mas se você está num país do Terceiro Mundo, ou é vulnerável de algum outro modo – como, digamos, Ucrânia ou Venezuela – a Washington oficial insiste em que você fatie sua rede de seguridade social, e dê rédeas soltas aos investidores privados.

Se você é cordato e aceita deixar-se escravizar pelo “livre mercado”, então você se converte, pela definição norte-americana, numa “democracia” – mesmo que a “democratização” seja feita contra a vontade da maioria dos cidadãos daquele país considerado cordato. Em outras palavras, não importa o que os eleitores desejem; são obrigados a aceitar a “magia do mercado”, codinome “democracia”.

Hoje, no idioma falado nos EUA, “democracia” passou a significar o antônimo do significado clássico. Em vez de governo pela maioria do povo, tem-se governo pelo “mercado”, o que usualmente se traduz como governo por oligarcas locais, estrangeiros ricos e bancos globais.

Governos que não sigam essas regras – e que, diferente disso, cuidem de modelar as próprias sociedades de modo a suprir as necessidades dos cidadãos médios – são declarados “não livres”, o que imediatamente os torna alvos para “organizações não governamentais” (mantidas por dinheiro dos EUA) as quais treinam ativistas, pagam jornalistas e coordenam grupos de negócios para organizar uma oposição que providenciará a derrubada daqueles “governos não democráticos”.

Se algum governante cuidar de defender a soberania do próprio país e sirva-se, para tanto, de providências como exigir que aquelas ONGs registrem-se como “agentes estrangeiros”, o governante e seu país são imediatamente acusados de violar “direitos humanos” e torna-se candidato a formas mais agressivas de “mudança de regime”.

Atualmente, uma das principais queixas dos EUA contra a Rússia, é que os russos exigem que as ONGs mantidas por governos estrangeiros; ativas na Rússia; e dedicadas a influenciar decisões políticas em território russo registrem todos os seus ativistas como “agentes estrangeiros”. O New York Times e outros jornais e televisões ocidentais citaram essa lei de 2012 como “prova” de que a Rússia convertera-se numa ditadura; e ignoraram o fato de que os russos apenas copiaram legislação vigente nos EUA, chamada “Lei de Registro de Agente Estrangeiro” [orig. Foreign Agent Registration Act].

Quer dizer: tudo bem que os EUA rotulem gente paga por entidades estrangeiras para influenciar as políticas norte-americanas como “agentes estrangeiros” – e que os EUA metam na cadeia agente estrangeiro não fichado como tal. Mas se a Rússia fizer a mesma coisa, é antidemocrático e viola direitos humanos. Não há quem não saiba que muitas daquelas ONGs que operam na Rússia (e na Venezuela e no Brasil e por todos os países) não são entidades “independentes”; que são financiadas e mantidas por agências do governo dos EUA conhecidas como Dotação Nacional para a Democracia [National Endowment for Democracy (NED)] e Agência Norte-americana para o Desenvolvimento Internacional [orig. U.S. Agency for International Development (USAID). [1]

Há até um elemento autorreferente nessa queixa dos EUA. À frente da denúncia contra a Rússia e outros governos que limitam a ação dessas ONGs financiadas pelos EUA está a ONG Freedom House, que mantém um “índice de liberdade” que tira pontos de países que se recusem a aceitar a intromissão dos EUA em seus assuntos. Problema é que, ao longo dos últimos 30 anos, essa Freedom House passou a operar como subsidiária da NED, ela também mais uma ONG de aluguel.

A mão oculta da CIA

A avançada começou a valer em 1983, quando o diretor da CIA William Casey foi mandado criar um sistema para sustentar a Freedom House e outros grupos de fora da agência, que passariam a trabalhar em propaganda e no tipo de ação política que a CIA historicamente sempre organizou e financiou clandestinamente. Casey ajudou a fazer o plano para um entidade a ser paga e mantida pelo Congresso, e que serviria como conduíte para o dinheiro do governo dos EUA.

Mas Casey reconheceu a necessidade de passar a esconder as pegadas da CIA. “Obviamente nós aqui [na CIA] não podíamos aparecer na linha de frente do desenvolvimento desse tipo de organização, nem como patrocinadores ou defensores” – Casey escreveu numa carta não datada para o então conselheiro da Casa Branca, Edwin Meese III. – E Casey propôs que se criasse uma “Dotação Nacional” [orig. a “National Endowment].”

O planejamento de Casey levou, em 1983, à criação da NED, que foi entregue ao neoconservador Carl Gershman, que lá permanece, no comando, até hoje. Hoje, a National Endowment de Gershman distribui mais de US$ 100 milhões por ano, o que incluiu financiamento para zilhões de ativistas, jornalistas e outros grupos dentro da Ucrânia antes do golpe do ano passado, e hoje paga para manter dúzias de “projetos” na Venezuela, já de olho no próximo emergente a ser submetido ao tratamento de “mudança de regime”.

Mas o dinheiro da NED é apenas parte de como o governo dos EUA manipula eventos em países vulneráveis. Na Ucrânia, antes do golpe de fevereiro de 2014, a Secretária-de-Estado assistente, a neoconservadora Victoria Nuland fez saber aos líderes empresariais ucranianos que os EUA já haviam investido US$ 5 bilhões de dólares em suas “aspirações europeias”.

Nuland escolheu pessoalmente quem lhe parecia indicado para a nova liderança; informou ao embaixador Geoffrey Pyatt dos EUA que “Iáts é o cara”, referindo-se ao político “pró-livre-mercado” Arseniy Iatseniuk, o qual, não surpreendentemente emergiu como novo Primeiro-Ministro depois de violento golpe de estado que, dia 22 de fevereiro de 2014, derrubou o presidente eleito Viktor Ianukovitch. 

O golpe marcou também o início de uma guerra civil que já custou mais de 6 mil vidas, a maioria delas de russos étnicos no leste da Ucrânia que apoiaram Ianukovitch e foram tomados como alvo de sangrenta ação “antiterrorismo” comandada por neonazistas e outras milícias de extrema direita financiadas e armadas pelo governo de Kiev, sustentado pelos EUA. Mas para Nuland, todas as culpas do mundo recaem sempre sobre o presidente Vladimir Putin da Rússia.

Além do número escandaloso de mortes na Ucrânia, a economia do país for destruída; mas Nuland, Iatseniuk e outros livre-mercadistas conceberam uma solução, alinhada com os desejos do FMI comandado pelos EUA: austeridade nas costas do ucraniano médio.

Falando à Comissão de Relações Exteriores do Senado na terça-feira (10), Nuland exigiu “reformas” para converter a Ucrânia num “estado de livre-mercado”, incluindo decisões “para reduzir e cortar pensões, aumentar exigências sobre os trabalhadores e impor idade mais avançada para aposentadorias; [além de] cortar subsídios para o gás, que induzem ao desperdício”.

Em outras palavras, essas “reformas” são concebidas para fazer ainda mais difícil a vida já muito difícil dos ucranianos – cortar pensões, remover proteções ao trabalho, obrigar as pessoas a trabalhar até a velhice e forçá-las a pagar mais pela calefação durante o inverno.

“Partilhar” riqueza

Em troca dessas “reformas”, o FMI aprovou um “resgate” de US$ 17,5 bilhões a serem entregues à Ministra das Finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, que, até dezembro passada era a diplomata norte-americana responsável por um fundo de investimentos de US$ 150 milhões, dinheiro dos contribuintes norte-americanos, para a Ucrânia, e que acabou com os cofres vazios, quando a diplomata meteu-se em negócios que – por razões que só ela conhece completamente – ela muito se esforçou para manter secretos. Agora, a Sra. Jaresko e a turma dela terão a magnífica oportunidade de zelar por mais de 100 vezes mais dinheiro.

Outros destacados norte-americanos também andam flanando em torno das oportunidades “democráticas” que se abrem na Ucrânia. Por exemplo, o filho do vice-presidente Joe Biden, Hunter, foi nomeado para a diretoria da Burisma Holdings, a maior empresa privada ucraniana de gás, empresa nebulosa, com sede em Chipre e associada ao Privat Bank.

O Privat Bank é controlado pelo bilionário oligarca à moda máfia, Ihor Kolomoysky, indicado pelo regime de Kiev para governar a província de Dnipropetrovsk, no centro-sul da Ucrânia. Nesse tributo à “democracia”, as autoridades ucranianas assalariadas pelos EUA deram a um oligarca uma província só dele, para governar. Kolomoysky também ajudou financeiramente as forças paramilitares constituídas para matar russos étnicos no leste da Ucrânia.

A empresa Burisma também deu emprego a outros lobbyistas norte-americanos bem relacionados, alguns deles ligados ao Secretário de Estado John Kerry, incluindo o ex-chefe de gabinete de Kerry no Senado, David Leiter, conforme já se sabe.

Como a revista Time noticiou, “o envolvimento de Leiter na empresa completa uma equipe de norte-americanos politicamente conectados, que também inclui um segundo novo membro da diretoria, Devon Archer, Democrata e ex-conselheiro da campanha presidencial de John Kerry em 2004. Ambos, Archer e Hunter Biden trabalharam como sócios do genro de Kerry, Christopher Heinz, sócio fundador de Rosemont Capital, uma corretora privada de valores”.

Assim se vê que essa moderna modalidade de “democracia” à moda dos EUA até que tem, afinal, alguns traços de “partilha de riquezas”.

Com o que chegamos à crise, que se agrava a cada momento, com a Venezuela, país latino-americano governado por uma década por governos eleitos de esquerda – com amplo apoio popular – que têm buscado partilhar a riqueza nacional venezuelana, o petróleo, o mais amplamente possível, inclusive no custeio de ambiciosos programas sociais para superar graves problemas dos venezuelanos, como as altas taxas de analfabetismo, doenças e miséria.

Não há dúvida possível de que o falecido presidente Hugo Chávez e seu sucessor Nicolas Maduro, os chamados governos chavistas, obtiveram muitos progressos na luta contra males que há séculos acometem a Venezuela e que jamais foram preocupação de qualquer dos governos protegidos pelos EUA, como do presidente Carlos Andrés Perez, que colaborava com a CIA e obedecia servilmente os ricos e poderosos.

Chávez e Maduro inspirados por Simón Bolívar

Um dos assessores de Andrés Perez revelou que o presidente venezuelano partilhava a villa onde vivia nos arredores de Caracas com gente do quilate de David Rockefeller e Henry Kissinger, servindo-lhes belas jovens, para animar as visitas.

Chávez e Maduro, no mínimo, tentaram melhorar a vida do povo venezuelano. Mas agora, quando o país enfrenta crise econômica que se agrava dia a dia, e aprofundada ainda mais pela queda nos preços do petróleo, Maduro viu-se sob pressão política crescente, boa parte da qual financiada ou “inspirada” por Washington, com apoio ativo do governo direitista da vizinha Colômbia.

Acusações de golpe

Maduro reagiu aos movimentos contra seu governo acusando alguns adversários de estarem urdindo um golpe, acusação que serviu de motivo de chacota no Departamento de Estado dos EUA e nos veículos da imprensa-empresa dominante nos EUA – duas entidades que parecem absolutamente convencidas de que os EUA nunca cogitaram nem jamais cogitarão de armar golpes na América Latina.

Essa semana, a Casa Branca declarou que a evidência de qualquer golpe ou tentativa de golpe urdido contra a Venezuela são ou invenção ou delírio, como “noticiou” o New York Times. O presidente Barack Obama falou então do que, para ele, seria “extraordinária ameaça à segurança nacional dos EUA”, vinda da Venezuela; e imediatamente congelou os bens depositados em território norte-americano de sete políticos e oficiais militares venezuelanos.

O fato de Obama pronunciar, sem piscar, a frase acima rouba a credibilidade de qualquer frase que o presidente dos EUA venha a pronunciar algum dia. A Venezuela absolutamente nada fez que ameace a “segurança nacional dos EUA”, extraordinariamente ou seja como for. Verdade ou não o que se teme hoje sobre algum golpe de estado em andamento, a Venezuela tem muitas mais e mais graves razões para temer pela sua segurança nacional nas mãos dos EUA.

Mas naquele mundo de sobe e desce da Washington Oficial, burocratas e jornalistas ouvem, acolhem e repetem todos e quaisquer absurdos, como mais esse.

Há poucas semanas, almocei com um funcionário de muitos anos do Departamento de Estado, que gargalhava ao falar da dor que a queda nos preços do petróleo estava causando à Venezuela e a outros estados “adversários”, inclusive Irã e Rússia.

Perguntei por que os EUA tanto se divertiam com o sofrimento dos povos desses país. Sugeri que, talvez, os EUA tivessem mais a ganhar se aquelas pessoas, naqueles países estivessem bem de vida, com dinheiro no bolso para comprar e fazer negócios.

A resposta dele foi que esses países haviam causado problemas para a política externa dos EUA no passado; agora chegou a hora de pagarem pelo que fizeram. Chamou-me de “adorador de Putin”, só porque disse que discordo da linha do Departamento de Estado de culpar a Rússia por todas as dificuldades da Ucrânia.

Hugo Chávez reconstruiu a Venezuela

Mas a questão realmente importante e mais ampla é: por que os EUA insistem em impor regras de “livre mercado” contra esses países, quando os democratas e até alguns republicanos já concordam que “livre mercado” sem absolutamente qualquer regulação nunca funcionou bem para o povo dos EUA?

Foi o extremismo do “livre mercado” que levou à Grande Depressão dos anos 1930 e à Grande Recessão de 2008, efeitos das quais só muito lentamente começam agora a retroceder.

Além do mais, já se sabe que democracia real – isto é, o desejo da maioria de modelar sociedades que atendam aos muitos, não só a uns bem poucos – leva também a bons resultados econômicos. A sociedade e a economia dos EUA eram consideravelmente mais firmes e mais fortes, quando as políticas oficiais estimulavam o crescimento de uma classe média, do New Deal até os anos 1970.

Com certeza houve erros e planos malsucedidos durante aquelas décadas, mas todos os experimentos com qualquer “livre mercado” absolutamente sem controles levaram sempre à mais completa catástrofe. Pois, apesar disso, é o que o governo dos EUA parece determinado a impor a governos vulneráveis em outros países, cujas maiorias votam sempre na direção de construir ali sociedades mais igualitárias, mais justas.

E além de todo o impacto negativo do “livre mercado”, há também o perigo de que políticas desencaminhadas, que causam desigualdade cada vez maior e praticadas por governos eleitos, comecem a desmoralizar, a desacreditar, até difamar completamente, a própria democracia.

Nota da tradução:
[1] A USAID é agência de triste memória para nós no Brasil, há mais de 50 anos. Por exemplo colhido ao acaso na Internet, sem melhor procura:


A reforma universitária se deu durante o governo militar, que buscava submeter todo o ensino ao capitalismo dependente, representando abertamente as intenções da burguesia. No ano de 1965, o até então, Ministro da Educação, Raymundo Moniz de Aragão, entregou a responsabilidade de “reformular” a estrutura da universidade brasileira a um grupo de especialistas norte-americanos. A partir daí, segue-se uma sucessão de acordos entre o MEC e a USAID por intermédio da AID (Agência para o Desenvolvimento Internacional) realizados de forma sigilosa, já que a população só tomou conhecimento dos acordos em 1966.
 
Como ensina Lauro de Oliveira Lima, “é a primeira vez, ao que se saiba, que o planejamento educacional de um país é objeto de sigilo para o próprio povo que o utilizará”. Seguindo as orientações da assistência técnica da USAID o governo resolve adotar medidas para adequar o sistema educacional brasileiro ao modelo de desenvolvimento econômico que se intensificava na época (capitalismo- industrial)”.(“As Mazelas da Educação Brasileira, herdadas da ditadura militar”, 23/1/2011, Maria A. Alves Pionório, Revista Parâmetro).
 

*Jornalista investigativo norte-americano. Recebeu Prêmio George Polk de Reportagem Nacional em 1984 por seu trabalho na Associated Press sobre o caso Irã-Contras quando descobriu envolvimento de Oliver North. Trabalhou como correspondente em Washington para a Newsweek. Em 1995 fundou o ConsorctiumNews, um espaço de noticiário liberal online dedicado ao jornalismo investigativo. De 2000 a 2004, trabalhou para agência Bloomberg. Parry escreveu vários livros, incluindo Lost History: Contras, Cocaine, the Press & “Project Truth” (1999) e Secrecy & Privilege: Rise of the Bush Dynasty from Watergate to Iraq (2004).

Fonte: Redecastorphoto. Tradução do coletivo Vila Vudu

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